No final do ano passado, finalizei as filmagens do meu último curta-metragem, que escrevi, dirigi, e montei: Ararat. Até o momento, este é o projeto autoral com o qual contei com a maior quantidade de estrutura e recursos para materializar minha visão. Todo projeto vem anexado com seus já esperados desafios, mas não sabia que teria de enfrentar um dos mais atípicos entre eles.
“Ararat”, que inclusive já foi tema de outra matéria aqui no Money Crunch, trata de uma questão muito importante para mim, e para milhares de pessoas ao redor do mundo, a cultura armênia e as consequências atuais do Genocídio de 1915 que, por pouco, não tirou a vida dos meus bisavós, que presenciaram e viveram este período em sua plena execução.
O que foi o Genocídio Armênio?
Em suma, o Império Turco Otomano exterminou quase 2 milhões de armênios em uma guerra territorial/ideológica, e os poucos armênios que restaram acabaram se espalhando por diversos países pelo mundo, sendo um deles, o Brasil.
A grande questão é que, até hoje, a Turquia não reconhece este genocídio, alegando um número de mortos infinitamente menor do que de fato foi. De certa forma, para a Turquia e alguns outros países, é como se o Genocídio Armênio não tivesse existido. Sempre levei esta ideia como algo extremamente absurdo, e passei um bom tempo amadurecendo uma forma de levar a frente esta informação que precisa ser espalhada.
Existem muitas questões que poderiam ser faladas em relação a esse tema, incluindo os recentes conflitos envolvendo o Azerbaijão, que contam com o apoio da Turquia. Todavia, para um curta-metragem, de aproximadamente 17 minutos, preferi entrar no âmago pessoal, familiar. Quis falar sobre o que conheço: pessoas.
Evidentemente, tentei criar um microcosmo familiar entre dois irmãos com ideias diferentes sobre a própria cultura, traçando um paralelo que pode contar, mesmo que brevemente, um pouco sobre a comunidade armênia em São Paulo.
O processo de produção do projeto
O projeto foi roteirizado, rodado e finalizado quase que inteiramente durante o processo de pandemia. Desta forma, tendo em vista a crise que o país enfrentava, nem cogitamos por muito tempo captar o orçamento do filme via incentivo público.
E que fique claro, a maior parte dos países desenvolvidos, e que tem em seu planejamento o cinema como uma ferramenta cultural indispensável, séria e lucrativa, contam com incentivos públicos.
Um bom exemplo é “Robocop”, remake dirigido por José Padilha em 2014, brasileiro responsável pela direção de Tropa de Elite 1 e 2, Narcos e Ônibus 174. Mesmo contando com um grande investimento privado de dois grandes estúdios americanos, ele bate na tecla que milhões de dólares de incentivo público foram investidos no filme.
Mas não filmamos Robocop. Para um projeto de curta-metragem, com duração, escopo e objetivos muito diferentes, o jogo é outro. Sendo assim, planejamos realizar a captação inteiramente via fontes privadas.
Nossa proposta, mesmo que pouco megalomaníaca, também contava com fatores complicados. O filme se passa quase inteiramente dentro de uma câmara fria, e este ambiente teve que ser construído do zero, em estúdio.
A direção de fotografia e decupagem em geral também foi um desafio, uma vez que tínhamos um cenário relativamente muito pequeno para realizar movimentos. A atuação também precisava chegar em um ponto de intimidade e conforto entre os personagens, que levaria tempo. Todos estes fatores, unidos com mais outros, exigem energia. E claro, tempo. Sempre o tempo, que em cinema, vale quase mais do que dinheiro.
Desde o início, mesmo antes da captação, já havíamos criado uma página no Instagram, compartilhando o projeto com toda a comunidade armênia. Nosso objetivo era expor a iniciativa de construir um filme que levasse o tema para mais pessoas de fora da bolha da comunidade, além de inseri-lo no cenário do audiovisual brasileiro.
A recepção da comunidade armênia
A comunidade felizmente nos abraçou desde o início, e pessoas incríveis como a Vartine Kalaydjian, Denis Tchobnian e a Mariana Papazian – que posteriormente entrou como produtora associada -, nos ajudaram a levar nossa meta cada vez mais para frente.
Inicialmente, tentamos contactar órgãos armênios aqui de São Paulo. Apesar de todos terem se interessado pelo projeto, e se oferecerem para a divulgação, uma guerra era travada na Armênia, e boa parte do capital disponível era destinado para lá, além, é claro, do fator pandemia.
Então, aproveitando o engajamento que tivemos nas redes sociais, realizamos uma divulgação fervorosa do projeto, com teaser prévio, posts quase diários sobre o tema e projeto, tudo conectado à plataforma de financiamento coletivo, o Catarse.
A comunidade aderiu, além de amigos e familiares meus e de toda a equipe, que contribuíram com um valor substancial. Todavia, seguimos na procura de outras fontes de financiamento, uma vez que ainda precisávamos de uma considerável parcela para levantar o filme.
Entrada de Richard Rytenband como produtor executivo
O jogo mudou mesmo com a entrada do Richard Rytenband no projeto como produtor executivo. O Richard, com quem já trabalho e admiro faz tempo, acompanhou Ararat desde o início e nos ajudou em uma boa parte da viabilização do mesmo. Além dele, contamos também com o apoio de Marcio Rosario (produtor executivo) e Vinicius Pascal (produtor), que investiram tanto na filmagem quanto na inscrição em festivais nacionais e internacionais.
Em adição, é mais do que importante dizer que este filme não teria sido realizado sem a força, talento, persistência e energia de um time de mais de 30 pessoas, entre equipe e elenco, que trabalharam durante aproximadamente dois anos em Ararat.
Cerca de 80% do time, incluindo eu, não recebemos nada para realizar o projeto, tendo sempre em vista o objetivo de realizar um filme potente, de qualidade e com um caráter humano sobre um tema que ressoa sobre uma cultura inteira.
Passamos por diversos atrasos nas datas de filmagem por conta das crises do COVID-19 em São Paulo, e mesmo que ninguém da equipe tenha contraído o vírus durante o processo, a atmosfera era de medo e de espera. Mesmo assim, pouquíssimos membros de Ararat acabaram tendo que sair, seja por motivos pessoais, profissionais ou de saúde. Isto, mesmo em um contexto não pandêmico, seja ele de curta ou longa, é bastante raro.
Além de toda a experiência profissional e humana que tive realizando este projeto, levantar este filme de forma totalmente independente foi, no mínimo, uma aventura bastante intensa e atípica.
“Como incentivar cineastas que deveriam ter mais chances de levar seu talento às telas?”
Grande parte dos recursos utilizados para o cinema brasileiro são via Fundo Setorial e Lei do Audiovisual, e são estas que mantêm a filmografia nacional viva até hoje (isto quando estamos falando de longas-metragens). Estes meios de viabilização são importantes e devem ser preservados. Sem os recursos viabilizados por estas leis, o cenário audiovisual seria bem diferente, mesmo com o poder dos streamings.
Novamente, esta é uma lógica que não se aplica apenas no Brasil, mas também na França, Coreia do Sul, Itália, Alemanha e outras dezenas de países que tem o cinema enraizado em sua história como uma indústria séria.
Na minha visão, ao mesmo tempo que estes fundos são os responsáveis por materializar nosso cinema, eles também servem como uma muleta bastante frágil para os realizadores, uma vez que a saúde do cinema está sempre ligada à boa vontade do governo vigente naquela época. Isto, na minha opinião, é e sempre foi um perigo. Tanto nossa história recente, quanto mais antiga, confirma o caso.
Escrevendo isto, me lembro de uma entrevista de Héctor Babenco, cineasta imortal, para o programa Roda-Viva. Nela, o argentino naturalizado brasileiro afirma, abismado, que mesmo após ser indicado ao Oscar por sua direção por “O Beijo da Mulher Aranha”(1985), ainda encontra dificuldades em levar seus projetos à frente via incentivo público no Brasil.
Este é um assunto extenso, antigo e delicado, mas é curioso notar como ele se mostra como uma porta para discussões, mesmo a partir de um projeto de curta-metragem.
Desta forma, creio que é de extrema importância que ocorram mais iniciativas privadas na realização de curtas e longas-metragens, sejam elas exclusivas ou que cooperem com captações públicas. Talvez, este tópico, já tão desgastado acerca do público versus privado dentro do cinema, deveria servir apenas de base para conversarmos o que realmente importa: como podemos seguir desenvolvendo bons filmes, e incentivar cineastas que deveriam ter mais chances de levar seu talento às telas?
Ararat teve sua estreia em 2022, no 33º Festival Internacional de Curtas de São Paulo, o Kinoforum, um dos mais importantes e reconhecidos eventos cinematográficos da América Latina. Além disso, ainda segue sua carreira de festivais, sendo selecionado para festivais nos Estados Unidos, Austrália, Holanda, Reino Unido, e Áustria.
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