Nos primeiros dias do novo governo, surgiu um ruído a respeito de uma possível mudança monetária na América do Sul; mais precisamente, no Mercosul. De acordo com esses rumores, o nosso subcontinente poderia vir a ter uma moeda única nos moldes do que o euro representa na União Europeia.
Esse boato se fortaleceu a partir de uma reunião que o atual ministro da Fazenda do Brasil, Fernando Haddad, teve com Daniel Scioli, embaixador da Argentina no Brasil. O embaixador confirmou que essa suposta moeda foi um dos temas discutidos na reunião feita na última quinta-feira (5).
Só que a partir dessa reunião, e da subsequente declaração de Haddad e Scioli, começaram a circular várias notícias falsas e desinformação a respeito do tema. As principais delas foram as seguintes:
- Haddad quer acabar com o real;
- a nova moeda seria o “euro da América do Sul”;
Bem, nenhuma das duas notícias é verdadeira. Mas considerando que a segunda delas fosse, será que faria sentido? A América do Sul precisaria mesmo de uma moeda única para substituir as moedas nacionais de Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai e os demais países?
O texto de hoje vai, em primeiro lugar, trazer um esclarecimento a respeito do que é essa proposta de moeda única. Em seguida, mostrar que a ideia de uma moeda única é absurda, mas que há pelo menos duas possibilidades de isso dar certo. E uma delas não depende de nenhum governo.
Um país, duas moedas
Antes de mais nada, a ideia discutida por Haddad e Scioli não é criar uma moeda única de uso corrente. Ou seja, uma moeda que as pessoas vão utilizar no dia-a-dia, como o caso do euro.
Nesse sentido, cada país da América do Sul seguiria, caso a moeda fosse implementada, tendo a sua própria moeda – o Brasil com o real, os demais países com seus respectivos pesos. Não mudaria nada para a população em termos de uso cotidiano, pois não haveria troca de dinheiro.
O objetivo é a criação de uma moeda adicional que funcionaria como uma evolução do atual Sistema de Pagamentos em Moeda Local (SML). Trata-se de um sistema que funciona entre Brasil, Argentina e Uruguai e permite que exportadores e importadores possam realizar transações em suas moedas locais, sem depender do dólar ou de outra moeda estrangeira.
Portanto, a ideia da tal “moeda única” não é uma moeda em si, mas uma expansão do SML para que ele seja comum entre os países. Com isso, o novo sistema pode fortalecer o bloco comercial e ampliar as negociações entre os demais países.
Moeda única é um absurdo
Esclarecido o significado da tal moeda única, é hora de explorar a alternativa. Afinal, e se essa moeda evoluísse para se tornar dinheiro corrente, assim como o euro? Seria uma boa ideia os países adotarem esse arranjo de união monetária?
A resposta para ambas as perguntas é “não”. De fato, uma moeda única na América do Sul não passa de um absurdo e de um enorme risco financeiro.
Para começar, não há na região nenhum país que tenha um histórico de estabilidade política, solidez econômica e responsabilidade fiscal. Na Europa, por exemplo, países como Áustria, Países Baixos e, principalmente, a Alemanha cumprem esse papel. Eles são os líderes da União Europeia e servem como sustentáculo para o euro e a estabilidade da união.
Na América do Sul, por outro lado, não existe nenhum país que se compare a esses dois. Os países mais “organizados” da região seriam o Brasil, Uruguai e, talvez, o Chile, mas que nem de longe possuem a mesma solidez de suas contrapartes europeias.
Além disso, o próprio euro não é um arranjo 100% perfeito. Há, por exemplo, uma grande desunião fiscal no bloco do Velho Continente. Se Alemanha, Áustria e os demais são responsáveis, a UE também conta com Itália, Grécia e Espanha, cujas economias apresentam um grande desnível em relação aos seus pares mais ricos. Sem uma união fiscal, esses países também gastam mais, pressionando a parte fiscal da Zona do Euro e, em última instância, levando o Banco Central Europeu (BCE) a socorrer muitas economias, como ocorreu com a Grécia em 2015.
Imagine, então, o que ocorreria na América do Sul, onde um país como a Argentina sofre atualmente com uma inflação anual de quase 90%. Ou a Venezuela, que tem uma das maiores inflações do planeta e nenhum controle sobre seus gastos. Ou até o Brasil, que intencionalmente criou goteiras em seu já frágil teto de gastos. Em suma, a moeda única não tem como dar certo aqui.
Já existem moedas únicas
Mas a ideia de uma moeda única na América do Sul não é de todo ruim. A parte ruim é que essa moeda fique no controle dos irresponsáveis governos locais – ou, pior, de um futuro Banco Central Sulamericano (yikes!).
Felizmente, a nossa região não precisa disso para adotar uma moeda única com sucesso. Hoje em dia, existem pelo menos duas alternativas que os países podem ter se de fato querem uma moeda única: o dólar e o Bitcoin.
A moeda americana é a solução mais fácil e, até o momento, a que apresenta mais estabilidade. Existe até um caso de sucesso na adoção do dólar por aqui: a própria Argentina, que adotou a paridade cambial em boa parte dos anos 1990. Na época, um peso valia o mesmo que um dólar e o Banco Central do país apenas emitia e retirava pesos conforme a quantidade de dólares aumentava ou diminuía.
Curiosamente, esta foi a última vez que os argentinos experimentaram uma inflação menor que dois dígitos. De acordo com o Instituto Mises Brasil (IMB), a paridade com o dólar derrubou a inflação de 1.344% em 1990 para 84% em 1991, 17,5% em 1992, 7,4% em 1993, 3,9% em 1994, 1,6% em 1995 e, de 1996 até o final de 2001, a média foi de praticamente 0%.
O sucesso do dólar no país é tão grande que mesmo 20 anos após o fim da paridade, os argentinos utilizam a moeda no seu dia-a-dia. Praticamente tudo no país é cotado em dólares, as poupanças são em dólar, os argentinos convivem com o dólar. Outros países da América do Sul fizeram isso, de modo que não seria uma transição tão brusca adotar a moeda americana em lugar das moedas nacionais.
Já o Bitcoin, por outro lado, ainda é muito instável para ser adotado como uma moeda local. Isso aconteceu em El Salvador, que adotou o Bitcoin em 2021, mas o país da América Central também utiliza o dólar desde 2001.
Sua experiência com o Bitcoin ainda é muito recente e apenas o tempo dirá se será bem-sucedida ou não. Mesmo assim, o Bitcoin já se mostrou melhor do que as moedas sulamericanas, visto que ao contrário destas o Bitcoin ganhou valor nos últimos dez anos.
Em suma, adotar uma moeda estável e já reconhecida pelo tempo seria uma decisão melhor para a América do Sul do que construir uma nova moeda e ter que dar credibilidade a esta moeda. Algo que a nossa região já demonstrou que tem dificuldade de construir.